A culpa ocidental pelo terrorismo
Enquanto um de nós humanos estiver em situação de risco, perigo, ameaça, violência, miséria, escravidão, desnutrição, indignidade e desabrigo, todos nós também estaremos presos e ancorados nessa energia horrenda e mutilante
Por Alexandre Quaresma* e J. Bamberg** | Foto: Pablo Martinez Monsivais/AP | Adaptação web Caroline Svitras
Antes de qualquer coisa, é preciso algumas ponderações estruturais que, a partir deste instante, servirão de fundamentações e premissas para as nossas reflexões. A primeira delas é um tanto quanto óbvia, mas, ainda assim, merece ser mencionada. Desde os tempos mais antigos, que remontam à própria origem da vida gregária humana na Terra, nós percebemos que o enfrentamento da realidade circundante se tornaria mais eficiente e prático se fosse encarado grupalmente, no que poderíamos chamar de trabalho conjunto. E deixar o estado natural que precedeu a civilização e passar a viver em sociedade não foi tarefa fácil.
O bom selvagem, para poder abandonar sua condição de plenitude animal – como nos ensinou Jean-Jacques Rousseau – e se adaptar à vida gregária, precisou abdicar dessa autonomia e liberdade, animal e instintiva, e passar a seguir rigorosamente o Contrato social, sob pena de ser punido ou expurgado do próprio sistema societal que, pouco a pouco, se constituía. E, como ser humano é ser complexo, contraditório e diverso, faz-se necessário, fundamentalmente, lograr êxito em tolerar o outro (ou os outros), bem como suas complexidades, contradições e diferenças. Mesmo porque, sem isso, restaria apenas a barbárie. Pois, como Thomas Hobbes sabiamente detectou, antes da socialização, os seres humanos viviam numa eterna guerra de todos contra todos, o que, convenhamos, reduz e muito as chances de sobrevivência e permanência, seja do indivíduo, seja da espécie.
A volta da Guerra Fria
Nossos ancestrais descobriram que enfrentar o mundo que os circunscrevia seria muito mais fácil e eficiente se o fizessem em grupo. Todavia, se por um lado essa nova dinâmica grupal trouxe inquestionáveis benefícios, por outro também exigiu um enorme esforço e dedicação psicossocial da própria espécie. Mas, não nos enganemos, pois as contradições entre o animal humano selvagem e o humano social civilizado persistem e nos desafiam até os dias atuais. Diante dessa conjuntura, a Sociologia é justamente a disciplina que vai se ocupar de tentar entender essas dinâmicas estruturantes que buscam conciliar a animalidade e a civilização de cada um, e, principalmente, esclarecer como os membros dessa socialização se organizam e se relacionam entre si.

Um segundo ponto importante a ser destacado em termos de premissa é o seguinte: é impossível tentar argumentar racionalmente com alguém que coloca um cinto de explosivos no próprio corpo e parte fortemente armado para ações terroristas suicidas, pois ele crê firmemente que está fazendo o correto, ainda que esteja sendo ostensivamente manipulado, seja raso de raciocínio, tenha sofrido lavagem cerebral ou qualquer outra coisa que o valha, pois, ao fim e ao cabo, o resultado sinistro final será o mesmo: o terror da barbárie, a banalização da vida humana e a degradação da própria humanidade. Além disso, é preciso compreender também que esse momento histórico delicado que vivemos é o reflexo, um exsudato de um processo de colonização brutal, que remonta, em primeiro momento, a diversas culturas, e, em dimensão maior, ao Império Romano e ao colonialismo recente, que põe seus pés e suas garras na África e Oriente Médio, com a Guerra Santa, e, a posteriori, com as demais conquistas de terras e povos, que vão alimentar a futura Renascença, bem como às ocupações que têm seu ápice em todo o século XIX, num contexto renominado como Mercado Capitalista. E se o Velho Mundo está preocupado – como pretenderiam alguns –, pode-se dizer que está justamente pelos retornados desse mesmo processo de ocupação colonial que ele mesmo, outrora, iniciou. Ou seja, ao que tudo indica a “conta” finalmente chegou.
Globalização de quê e para quem

Tudo isso – é bom que se diga – diz respeito também a essa globalização sectarista e extremamente parcial que aí está, cultuada pela mídia como um avanço civilizatório da humanidade, que só globaliza de fato o livre trânsito de capitais financeiros e corporações, mas que não o faz com as pessoas comuns – especialmente as menos privilegiadas –, que são ostensivamente impedidas de transitar entre as fronteiras dos países, e que encontram enormes dificuldades e empecilhos para ir e vir, e ainda arriscam suas vidas – já despedaçadas, desestruturadas e completamente destruídas – em migrações ilegais, por vias alternativas e extremamente perigosas, que, muitas vezes, roubam-lhes a única coisa lhes resta: as suas vidas. Porém, o que não se menciona é que o Velho Mundo tem uma dívida moral perante os desesperados que buscam uma vida melhor no interior desse mesmo império construído às custas deles. Em casos extremos como esses, a força bruta e a violência simplesmente não funcionam.
A nossa história pregressa é muito clara quanto a isso: violência gera violência, que gera mais violência, e assim por diante. E mais: outro fator determinante nesse contexto, que desde sempre foi (e ainda é) o gatilho que gera o extremismo do terror, é a questão da intolerância, que pressupõe o equívoco obnubilante de olharmos o outro e querermos que ele seja igual a nós, e, em muitos casos, exigirmos isso. Como já escrevemos em nossa coluna Cibercultura, no 58, intitulada Je suis Sociologie!, “um dos maiores problemas nesse tipo de contexto – podemos sustentar – é, com certeza, a intolerância. Quando o outro – por ser diferente e ter suas crenças e seus credos também diferenciados – passa a ser um problema, uma alteridade insuportável, um inimigo a ser combatido, e não apenas o diverso, exótico e até – por que não dizer – complementar; quando a fraternidade e a humanidade não podem ser ouvidas pela rudeza dos corações surdos e pelo amargor das almas agônicas a se digladiar; e, principalmente, quando exigimos que esse outro seja igual a nós, impositivamente, arbitrariamente, incondicionalmente: surgem então o terror, a barbárie, o genocídio”.
Encruzilhada civilizacional
Encontramo-nos numa encruzilhada, onde, segundo o nosso rude entendimento, restam apenas duas grandes opções (ou caminhos) para a superação da atual crise. Começando pela melhor e mais virtuosa hipótese – e também a mais improvável e difícil de se concretizar, ainda que seja a que oferece certamente maiores chances de êxito de sanarmos as causas dos problemas –, que seria mudarmos o nosso paradigma egoísta e beligerante, e, através de uma ação coordenada globalmente, iniciarmos um novo ciclo de ações inteligentes e estratégicas para combater as causas, e não apenas os efeitos, por meio de um círculo virtuoso e humanístico, onde pudéssemos enxergar e compreender o outro como ele de fato é, ou seja, como um ser humano complexo, contraditório e diferente de nós.
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Em teoria parece simples, todavia na prática definitivamente não é, pois quando o extremista terrorista fundamentalista detona sua bomba, mandando pelos ares tudo que existe ao seu redor, incluindo ele mesmo, ele só o faz porque as suas vítimas não são identificadas e significadas por ele como semelhantes, sendo apenas meios para alcançar outros fins, que, pretensamente – pelo menos para ele –, justificariam esses meios brutais e indignos. É simples: quando um drone militar estadunidense elimina um alvo inimigo importante – independentemente de sua culpa, ou de ser um carrasco brutal e cruel –, a sociedade que dá a referida ordem de disparo fatal contra o referido pretenso inimigo registra tudo em vídeo de alta resolução e o divulga na mídia para o mundo inteiro ver e se admirar com o feito, esta sociedade quer mandar um recado relativo a questões de poder e vingança, mas, concomitantemente, também acaba mandando um outro recado que, por seu turno, diz respeito a toda a humanidade, e que também revela a natureza da própria relação hegemônica dominante, que, a um só tempo, exemplifica a desimportância e a banalização da vida. Até porque, sem embargos, se (e quando) somos bárbaros com os bárbaros que nos afligem, aterrorizam e atacam, tornamo-nos tão bárbaros quanto eles. Não há dúvidas quanto a isso. No caso do carrasco eliminado pelo drone recentemente – pelo menos, segundo o nosso entendimento – fez-se o contrário do que se deveria fazer, pois matar pessoas sumariamente sem lhes oferecer a chance de defesa, de contraditório, e, no mínimo, um julgamento justo, somos tão brutais como nossos pretensos inimigos. Correto seria capturá-los vivos, apurar todos os seus crimes e violações dos direitos humanos e seus atos de guerra, e em seguida julgá-los e puni-los exemplarmente, segundo os ditames da lei.

Aliás, como essa turma de extremistas radicais se tornou inimiga pública não só dos principais atores envolvidos (EUA, União Europeia etc.), mas de toda a humanidade, talvez seja hora de nos unirmos planetariamente através da própria ONU, fortalecendo-a novamente, como à época de sua criação, e organizarmos uma operação inteligente e massiva com o máximo de tropas possíveis, mas com o mínimo de disparos e confrontos, usando principalmente a inteligência e as tecnologias, e, em especial, adotando estratégias eficientes e menos conflitivas, como bloquear os recursos financeiros, cercar as regiões críticas impedindo a chegada de suprimentos e o trânsito de malfeitores, oferecendo dinheiro para obter informações e assim por diante. Talião e sua famigerada máxima – olho por olho e dente por dente – já consumiram olhos e dentes demais.
Ademais – e reforçando essa ideia de fraternidade global –, ousaríamos afirmar que, enquanto um de nós humanos estiver em situação de risco, perigo, ameaça, violência, miséria, escravidão, desnutrição, indignidade e desabrigo, todos nós (humanidade) também estaremos presos e ancorados nessa energia horrenda e mutilante, pois, mesmo que ignoremos, somos todos irmãos, vivemos num mesmo planeta, temos as mesmas necessidades, e gozamos das mesmas condições de sensibilidade e fragilidade. Por isso a fraternidade é – segundo o nosso entendimento – a única qualidade capaz de lidar com tamanhas atrocidades e desumanidades. O mundo definitivamente não precisa de mais armas, guerras, conflitos, massacres, pilhagens, refugiados, explorações, desumanidades e barbáries. É chegado o momento de tomarmos consciência de nossa cumplicidade compartida com respeito ao planeta e à própria civilização humana, tomando consciência de vez que estamos juntos e irreversivelmente conectados numa única e mesma realidade.
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Para encerrar essas reflexões, faremos nossas as palavras do ex-presidente do Uruguai José Mujica, cuja vida cotidiana é um exemplo vivo de suas ideias vanguardistas de extrema humanidade. Em visita recente ao Brasil, e falando para um público de estudantes revoltosos e insatisfeitos com a atual crise de corrupção, ele, com grande sabedoria, afirmou in verbis: “Nada é mais bonito que a vida. Mas, na vida há que se defender a liberdade. É possível esparramar a vida pelo universo. A vida humana. Mas, para isso, é preciso que comecemos a pensar como espécie, não só como país. A generosidade é o melhor negócio para a humanidade. (…) Nunca haverá um mundo melhor se não lutarmos para melhorarmos a nós mesmos. Faça da sua vida a aventura de não apenas sonhar um mundo melhor, se não lutar por ele, gastar a vida lutando por ele”.
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*Alexandre Quaresma é escritor ensaísta, pesquisador de tecnologias e consequências socioambientais, com especial interesse na crítica da tecnologia.
**J. Bamberg é sertanejo, professor, pesquisador, artista e humanista, conselheiro e presidente da instituição ICCD/I. KAAPIKONGO – do Brasil de Dentro.
Fotos: Revista Sociologia Ciência & Vida Ed. 62
Adaptado do texto “Barbárie e terror, ou, a conta chegou”